quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Sobre Velhice e Hipocrisia



A velhice tem um lado "B" que a maioria prefere ignorar.  Ontem, dia 1° de outubro, comemoramos o dia do idoso. A palavra é um eufemismo para o "palavrão" velho. Existe uma tendência visceral na romantização da velhice, perdendo apenas para o aumento dos procedimentos cirúrgicos que tentam esticar, literalmente, a juventude.  
           Posto o meu conto sobre uma velha. Idosa é a vovozinha...

                                                           VÓ LURDINHA

               Vó Lurdinha mexia a dentadura para lá e para cá; no mesmo ritmo esfregava as mãos, tentando falar através delas. A sobrinha -Vó Lurdinha nunca se casou ou teve filhos- contou que alguém contou que ela era esquisita desde menina, sim, Vó Lurdinha já havia sido menina.       
       Muito antes das mãos enrugadas e inquietas teve dentes de leite que foram substituídos por de coelhos. Ela os perdeu com o tempo.Também perdeu os cabelos, a fome e os seios. O juízo perdeu muito antes de perder a casa, os cachorros e as plantas. Desde muito tomava remédios para os nervos, eram fracos...            
            No abrigo ficava sempre em um canto; resmungava coisas entre uma sambada e outra dos dentes. Não dançava; não cantava; não ria. E nunca recebeu visita. Os sobrinhos se desfizeram dela e dos seus cachorros, mas dividiram o dinheiro da casa e algumas de suas plantas. Planta dá muito menos trabalho que cachorro; que por sua vez da muito menos trabalho que gente. Ainda mais gente velha... 
         Vó Lurdinha tinha um mundo próprio, insondável. Talvez cheio de belas recordações, talvez de mágoas... Vai saber se foi beijada; se apanhou; se teve vestidinho rosa de voal; se existia sonho para além dos olhos embaçados.
            Um dia Vó Lurdinha não acordou para o remédio dos nervos, que vinha sempre depois do da pressão alta, seguido pelo da diabetes. A enfermeira não ouviu os resmungos nem viu o esfregar de mãos. Vó Lurdinha estava morta. O corpo em cima da cama; a Bíblia em cima do criadinho e o copo da dentadura em cima da Bíblia. Era tudo. A síntese de quase noventa anos.
           Ninguém chorou. Ninguém deu falta dela. Desfizeram-se do copo e da dentadura. A Bíblia mudou-se para outro quarto. Só algum tempo depois, Dona Edite, nova moradora do abrigo, herdeira da Bíblia de Vó Lurdinha, encontrou uma foto antiga entre as páginas. Era uma menina sorrindo, dentes de coelho, com um cachorrinho nos braços.