terça-feira, 23 de agosto de 2016

Esquerda e Emulsão de Scott

Quando eu era criança minha mãe, movida pela melhor das intenções, comprou para mim e minhas irmãs um suplemento alimentar com o objetivo de ajudar no nosso desenvolvimento físico e mental. Tratava-se da coisa de sabor mais horrível que um pobre ser de cinco, seis anos, pudesse ser condenado a aturar.
No primeiro dia fizemos uma “filinha”. Ela destampou a garrafa marrom que tinha o desenho de um homem com um peixe enorme amarrado nas costas. “Emulsão de Scott! Ótimo para a saúde!” A minha irmã mais velha sempre foi muito ajuizada, logo tomou. Fez uma “carinha ruim”, mas resignou-se. A mais nova, antecipou-se a mim, com a total inocência do que a esperava. Tomou! Fez uma série de caretas e pediu um doce para tapear o gosto. Na minha vez já havia captado todos os sinais de que a coisa era medonha!
 Falei que não queria, mas minha mãe argumentou que não era ruim; que eu cresceria forte e inteligente. Ela chegou a colher perto da minha boca e disse autoritária: “Abre a boca e toma!” Comecei a chorar. Aproveitando-se do momento, em um golpe baixo, enfiou o líquido na minha boca. Cuspi o que pude, mas parte do gosto que lembrava peixe morto dias, permaneceu até hoje na minha memória. Nunca mais comi peixe!
Dali para frente eu sempre corria da “filinha”, forçando-a a correr atrás de mim com a garrafa e a colher na mão, dizendo que eu não iria crescer e jamais seria inteligente. Cresci com boa saúde e um intelecto dentro da média. Mas devo admitir que aquele homem e seu peixe morto, eternamente amarrado nas costas, deslancharam a minha constante distorção dos conceitos.
Sempre que alguém, mesmo quando bem intencionado, me diz que algo é bom; que me trará saúde, prosperidade e felicidade, convenço-me de que estou diante de um péssimo negócio. Tenho muito menos precaução com as chamadas porcarias, as coisas que a maioria diz que são ruins. Por esta razão nunca fui comunista, mesmo sendo de uma geração em que ser comunista significava ser inteligente e saudável, no mínimo CULT.
Fui um dos poucos alunos que os professores, em especial os de História, não conseguiram arrebanhar para a “filinha” comunista. Assim que disseram que o Estado agigantado/paternalista era bom e o enxuto/competitivo era ruim, cismei... Quando disseram que Cuba era um paraíso e os USA um inferno, saí correndo deles, sem olhar para trás.
 Não sei se existe alguma relação entre o consumo de Emulsão de Scott e a manutenção das ideias neoliberais. Se houver, é possível que a nossa esquerda bananosa confisque todas as garrafas. Para mim é tarde! O estrago já foi feito. Desconfio de todo mundo que diz que vai cuidar dos meus interesses; que corrompe tudo em nome da coletividade. 
Aliás, depois da nossa experiência com o PT, recomendo que desconfiemos inclusive das mães bem intencionadas.

(Emulsão de Scott com a fórmula que aterrorizou milhares de crianças foi lançada nos EUA em 1876. Embora o óleo de fígado de bacalhau seja utilizado desde o séc. XVIII. Vendido em mais de 160 países, ele é a prova absoluta de que o objetivo do capitalismo é vender o peixe. Muita propaganda, o que leva a mitificação, ao exagero. No entanto, a maioria das mães adotaram os métodos bolcheviques para garantir que os filhos consumissem o tal remédio) 

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